20090222

Foram seis visões transformadas em vitral quebrado.


I

Ergo-me lentamente dos sujos lençóis do meu falso túmulo. Abro a cigarreira e retiro lentamente um calmante, que pouso ominosamente nos lábios. Acendo-o numa vela qualquer. Descubro que não sinto nada. Um vazio obscuro apoderou-se de mim. Contemplo a sua figura caída entre vestes e tecidos. Sinto uma onda de repulsa que me leva até ao limiar da náusea. Dirijo-me até à varanda a passos largos. O dia ainda não nasceu. Deixo as costas escorrerem pela porta de vidro, contemplo o arvoredo da entrada e depois o burburinho da rua. Sinto o calor do cigarro na ponta dos meus dedos, atirando-o de seguida em direcção ao pátio de terra batida.
Apressado, pego nas roupas que espalhei pelo aposento, visto-as e retiro-me. Em meia dúzia de passos estou ao pé do portão, em poucos mais estou ao pé da marginal. Não sinto nada.


II

Mais um café aborrecido. Ridicularizando as figuras que passam e dizendo parvoíces, não ligamos ao tempo. Somos jovens.
No meio de uma conversa particularmente superflua, a ingenuidade: «Lamento, mas não compreendi a tua atitude perante a rapariga». Descartável, suja, sem sentido. Lamento eu que não tenho vontade nenhuma de continuar. Parece que nos fartamos de tudo. Eu sei que me farto de tudo. Constantemente.
Mão na perna com ela e qualquer coisa mais. Não me apetece mais isto.

Mais tarde na mansão, meia garrafa de absinto e duas onças de tabaco do mais barato. Trocas de olhares e suposições. Os amigos criticam, não percebem o que quero dizer. Eu não me sei exprimir, escapo-me por pouco com mentiras e falsidades. Não tenho mais nenhum escudo.
Cheio de fantasia, levanto-me num extâse ridículo de ideologias: «Perdi a virgindade com uma puta cheia da doença. Lamento esse facto, mas não lamento o nojo que sentis de mim». Perante o riso que se apoderara dos presentes, eis que pego num copo e arremesso-o com perversidade contra a parede. «Cristal não significa nada. Estamos perdidos neste mar de nada. Não nos reinventamos. Temos medo. Somos tal e qual a multidão».


III

Insónia. Porque é que tenho tanto medo do insucesso? Olhem bem para mim, sou a figura máxima no que toca à representação do síndrome da tristeza. Não tenho força de vontade, sou íncomodo para os próximos. Onde está o meu ego, o que é que eu fiz dele? Costumava ter para onde ir, agora nem sei onde fica a porta da rua.
Lamento imenso tudo o que disse. Lamento imenso tudo o que os fez sentir que eu era outra coisa qualquer. E agora? Perco-me em delírios acerca daquilo que eu cada vez mais sei com certeza: não sou nada mais do que um pobre diabo sem confiança em si próprio. Com muita pena minha, não sou um herói qualquer.


IV

Suponho que faça sentido explicar alguma coisa. Vamos fazer assim: não nasci ontem. Já remoí centenas de vezes os mesmos assuntos. São a única coisa que me interessa e que me mantêm vivo. As inúmeras superficialidades desta existência patética. Convenci-me de imensas coisas, entre as quais um talento inexistente para a expressão criativa e artística. Felizmente a dura realidade mostra-me que sou apenas mais um. De tanto fugir à mediocridade caí mesmo no meio dela. Irónico.


V

«Dá-me um bocado de espaço, preciso de respirar», pensou ela. Idiota, senti o pensamento percorrer-me a espinha num abraço gelado e, ainda assim, continuei. «Não, não pode ser».

Numa qualquer mesa de uma qualquer casa, sentados em cantos opostos. Silêncio. Mando um sorriso desprezívelmente falseado. Minto descaradamente, ajo como um idiota. Resulta. O espaço pode só existir na cabeça dela. Quem é que quer saber? Eu não.
Seguimos então para a noite sem fundo. Durante todo o tempo dá-se um conflito absurdo na minha cabeça: por um lado amo tudo aquilo, por outro mal posso esperar que acabe. Viciado no sofrimento, instintivamente faço por tudo terminar da pior maneira. Lamento.

Nada disto foi feito para funcionar.


VI

Estou cheio de dores. Fiz tudo propositadamente mal. Ou talvez não. Talvez fosse o destino.
Não consigo estar sozinho. Gritos vindos de dentro das paredes empurram-me contra o meu corpo. Sinto um peso imenso na minha cabeça. Preciso de fugir.

Corro pelo cemitério fora. Não estou acordado. Oiço os gritos dela dentro do pulsar do meu coração. Oiço os avisos, as opiniões, as entrelinhas, os sorrisos, os gestos, meu deus, os gestos dentro do meu cadáver. Não sei nada. Não sinto nada. Sou pó.

20090207

Manuel.


Mafalda.