20100116

Fotocópia.


As manhãs são sempre horas de criatividade febril, desde que não esteja a acordar. Era o quarto dia em que me levantava depois do pôr-do-sol, já tinha perdido a conta aqueles em que me deitara depois do amanhecer. Não percebia se era o medo ou se era a excitação latente no meu corpo.
Tinha passado a noite a deambular pela baixa da cidade, sozinho. Ela já se tinha habituado, não acordara com o meu corpo às voltas pela casa, nem sequer com o barulho de abrir e fechar a porta do apartamento. Levei um livro comigo nessa noite, tenho a certeza disso, mas não sei qual era nem sei onde o deixei, pois nunca mais o vi.
Parei em frente ao cais a ver os iates a subir e a descer com as subtis ondas. Que vontade mais embalsamada... O peso de me sentir um cliché doía mais do que não ter força para escapar.
Pensei em pegar no telefone para lhe ligar, pedir-lhe para me vir buscar, sentia-me sozinho, mas tinha-o deixado em casa, claro. Apanhei um taxi e fui até ao aeroporto, com os primeiros raios de sol já no horizonte. Vi tantos a partir, tantos a chegar. No meio da multidão pareceu-me ver um antigo professor meu, não fui verificar. Voltei a chamar um taxi e fui embora.

***

Ela estava por casa, decidi almoçar em vez de ir dormir. Meti uma colher de sopa à boca, tentando não parecer demasiado distraído da conversa ao olhar pela janela.
-- Precisas de dormir.
Baixei os olhos para a sopa e concentrei-me nos bocadinhos de cenoura. «Quem me dera estar no campo» pensei.
-- Ouviste? -- insistiu.
Levantei-me e fui até à janela, continuando propositadamente distraído, tirando um cigarro do maço que estava pousado em cima da banca.
-- Ontem à noite sonhei que trabalhava para o padre da igreja que fica junto à casa dos meus pais. Ele tinha uma empresa de informática. Podia-se jogar bilhar no trabalho e até não era mal pago, mas achei o meu cubículo frio.
Com um suspiro levantou-se e encostou-se a mim.
-- Não te sentes dormente? -- perguntei.
Não respondeu. A falta de paciência era palpável.
-- Não me lembro se te disse, ele ligou ontem.
O olhar surpreso dela trouxe-me uma certa satisfação pobre. Olhei pela janela, fixando-me no ponto mais longínquo que encontrei. Soava mais sério assim.
-- Parece que sempre sou eu. Tenho o perfil certo, pelos vistos. Eu acho que tem mais a ver com o meu ar de agarrado, sinceramente. Não interessa. Sou eu.
Parecia confusa, mas feliz. O que se seguia era tremendamente previsível.
-- Ainda bem, ainda bem... Já estou cansada de te ver nesse ermo, sem propósito, sem horário, até me pareces doente... Finalmente. -- esperei, sabia que ia voltar a falar -- Se bem que não acredito muito que o projecto dele te vá fazer melhor.
«Claro que não vai»
-- Porquê?
-- Não sei. Tu nunca tinhas estado assim tão inerte nas alturas em que estavas sem trabalho como depois de terem trabalhado juntos. Sinto que na melhor das hipóteses vais ficar igual.
Não argumentei mais. Atirei o cigarro pela janela.
Testamento.


Foi aqui. Eu tenho a certeza absoluta de que foi aqui. Não olhes para mim assim culpa, deixa-me recuperar o meu hábito.

Eram horas certas, madrugada, abrigados em certezas lupinas estavamos acordados a repensar a nossa vergonha. Havia quatro de nós. Superiores, claro, na vontade e na consciência. Quase que aposto que estou a mentir, não interessa, segue-se:
-- Verdade e horror, abc.
Olhos fechados, batam palmas, por favor.
-- Qual complexa e horrível dissertação sobre a vitória, merda. Esta conversa é pútrida.
De mãozinhas dadas seguimos pelo monte fora, a ler o que estava gravado nas portas que jaziam arrancadas pela erva:
MORTE E FUGA.
PUTAS.
SUMÁRIO DAS ALMAS.
(etc...)
Somos bonitos, à nossa maneira. Pelo menos se nos vejo no vidrinho maroto que trago sempre ao pescoço. Que feliz. Que nojo. Onde andas?