20090510

Coisas que se escrevem de calças justas.


I

Lembro-me de quando não tinha para onde olhar. Foi como se tudo estivesse no centro duma mesa e fizesse sentido. Lembro-me de ter tudo.

Saí de casa naquele dia. Não queria voltar mais. Só tinha um cigarro comigo, mas podia sempre pedir a um estranho qualquer. Caminhei o mais que pude sem pensar, o que deu para pouco. Tomei dois valiums para continuar. Não resultou.
Sentado num banco qualquer raspei a nódoa que tinha no casaco contra um parafuso solto. As meninas passavam e eu olhava para o rabo delas, sem pensar muito no que isso queria dizer. Deitei-me e olhei para o sol com esperança de ver um pássaro que não me cagasse em cima. Tive sorte. Revirei os olhos e não aguentei mais o peso daquela velha ressaca. Vomitei tudo o que tinha num balde do lixo que por acaso se encontrava ao meu lado. Caí para o chão e um senhor veio ter comigo para me mandar embora. E eu fui.
As lojas estavam todas fechadas. Que dia tão aborrecido. Deixei cair uma moeda ao chão e ao baixar-me para a apanhar caíram-me também os óculos de sol. Deus, que dia tão aborrecido. Apanhei tudo e lá fui eu em direcção à casa de alguém.

Entrei na casa dos amigos com um grande alarido. O espectáculo do costume. Só me faltava pôr uma máscara. Deixei-me caír numa cama enquanto tocava uma canção sobre corações partidos, cheia de ironia, e nós a ouvirmos aquilo duma forma impossivelmente mais irónica. Que ridículo.
As horas que passaram, cheias de fumo e anedotas sem graça, resumiram-se a mais um dia sem propósito. Fugimos da rotina. Cheios de medo e fome, corremos as ruas em busca do horror de existir. E ela não me saía da cabeça. Precisava de mais um valium.


II

Doíam-me tanto os olhos por causa daquele maldito ambiente que eu amava. As silhuetas torturadas dos dançarinos macabros davam-me o tesão que eu tanto precisava para me sentir no inferno. O ruído, o toque, o suave ardor nas minhas narinas e a doce dor de ser empurrado pela multidão. Perdi então a vontade de ser eu.
O meu telefone tocou, uma e outra vez, cheio de fúria. Não quis saber. Chamei-a para mim e repeti um automatismo sentimental ao ouvido dela. Deu-me o maior dos apertos no meu fraco coração. Nunca me tinha sentido tão perdido. Empurrei a noite para dentro do fundo de mais um copo e caminhei a passos largos e amedrontados para a rua sinistra. Era eu e mais ninguém.
Tirei o último cigarro do bolso e lá o acendi com mãos trémulas. A minha alma, cheia de câncros duvidosos, doía como nunca.

Acordei cheio da doença. Não, era só uma ligeira dor de cabeça e qualquer vulgar tontura. Que horror matinal. Cocei a cabeça e pensei um pouco. Com tanta emoção já me tinha desabituado. Cambaleei até à janela e comi uma bolacha.

20090509

Câncro


Não tenho medo
Suponho eu
Tenho frio
Estou morto
Carta feia

Já beijei cem milhões de pessoas
E nenhuma me soube a mar

Não tenho fome
O tempo parou
E eu caí
Nem sei como não chorar
Lembro-me do teu dia
Foi como outro qualquer
E nada

Foi a última foda que te calhou
Nem sei porque é que a tiraste
Já mataste cem milhões de putas
E nenhuma te soube amar

Sou tão pós-moderno
Olhem para mim

Não tenho vontade
Já não me apetece
Nem acredito que isto passe por ritmo
Suponho eu
Mas já não tenho frio
E nem de morto consigo fingir

Epopeia, epopeia
Do nada e do cagar
Estou cansado como de costume
Vou fumar outro cigarro
E apagar a ponta nos meus olhos
Sei que assim vou chorar sangue
E impressionar a minha namorada

Ahah
Nada

Sinto todas as tuas feridas de merda
A arruinar o meu ambiente pútrido favorito
Quem se mete em tudo também se mete em ti
Não é?

Olhem para ela
Está cheia de sexo

Arranha-me com sangue
Estou cheio de dores
Ahah
Nada
Espera dois segundos
Já que partes cem milhões de janelas
Por cada lágrima derramada
Então aproveita qualquer coisa
E vai-te foder
Deixa-me em paz
Não sou teu
Não sou meu
Estou cheio de dores
Ahah

Bela merda
Só me saem duques
Ahah
Estamos todos no mesmo barco

Vai-te foder
Vou fumar outro cigarro
E apagar a ponta nos teus olhos
Pode ser que assim vejas
Que estou cheio do teu câncro
E das outras todas também
E não quero saber
Tenho calor
Tenho frio
Sei que quero morrer
Mas estou cheio de frio
E de calor
E isso dá-me preguiça
Prefiro estar assim.

20090415

Outro Mal Qualquer


Foi num dia como este
Entorpecido pelas horas cadentes
Que mudei as minhas vagas ideias
Sou um perdido
Sem sentido

Quis dizer todos os teus nomes
Mas só me lembrei do mais falso
Senti prazer no pequeno insulto
E nem assim me arrependo
Agora afasta-te de mim
Um passo de cada vez
Não olhes para a minha sombra
Esquece a minha marca

Repete depois de mim.
Mais, se até eu soubesse onde procurar.


I

Viver do fenómeno
Como se de alimento se tratasse
Tornou-se minha ambição
No decorrer de mais uma madrugada

Contei as horas
Em que te esperei sem querer
Sem vida a que me agarrar
Supondo que
Eventualmente
Me reconhecerías


II

Importei-me uma vez
Com as minhas parcas opções
Sabendo-me só
Escolhi tua companhia
Repetida

Ouvi vezes sem conta
Os ecos sem fundo
Dos gemidos ternos
Das nossas longas horas

Que não eram de mais ninguém


III

Senti
Quando qualquer rumo mudou
Que o mundo me tinha raiva
Por ter parido qualquer dor

Senti
Como se tudo fosse agora
Sem te saber na palma da minha mão
Senti-te junto a mim
Como uma flor que pisei
Ou algum grito que ignorei


IV

Março campestre
Porque me deixas sem pudor?
Lamentamos juntos
Teus ódios, minhas mágoas
Feridas abertas e sabores queimados

Beijei tua alma
Porque te sabia morto
Agora deixa-me
Não quero mais


V

Tracem-me o sexo
Só assim saberei mais qualquer coisa
Que nem falta me faz
Só porque sim

Tomem-me por garantido
Por favor
Não me venham exigir
Tudo o que já dei
Etcetera
Enfim


VI

Boca vermelha
Pálida
Suponho que estejas do meu lado
Não te sinto fria
Não me arrastas pela dúvida
Beijei-te ao hesitar
E agora perco-te
Num delírio qualquer
De triste
De pobre
Sem ter a tua paz


VII

O quão podre preciso estar
(pelo menos meu coração)
Para sucumbir a dúvidas
Eternas
Ai, meu semblante carregado
Que dor tão sem significado
Pobre de espírito
Nojo

Viciado no remoinho constante
Da perpétua renovação da dor
Que é tudo isto


VIII

Liberdade canina
Esta, a de te amar

Toma a minha força
De saber que caí
E perdoa-me inocências
Desespero e vómito

A noite é fantasia
E nós
Nós somos seu fosco reflexo


IX

Bruta eternidade
Que é o compasso de espera
Para o universo me dar fôlego
Desta feliz coincidência

Estou cheio de vontade
De tudo
Até de te foder
Mas não me levanto daqui para tal
Isso seria morrer
E amanhã é outro dia


X

Coroa tão vazia
A que me é atribuída
Pelo pudor

Afastem-se da minha carcaça
Por um ténue segundo
Sem esforços
E vejam o que fizeram da minha luta
Inexistente

Escolheram-na.

20090406

Penumbra semente
Se bem me lembro
Retiro tudo o que disse
Foi ontem
Foi ontem

Outro quadro
De outra qualidade
Lembra-te de mim
Hoje hoje
Hoje amanhã

Suponho que não saibas
Mas eu fui tua mãe
Fode com a parede
E lembra-te de mim